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Lori Lamby





SOBRE A OBSCENIDADE INOCENTE: O CADERNO
ROSA DE LORI LAMBY, DE HILDA HILST
Luciana Borges1. OPSIS - Revista do NIESC, Vol. 6, 2006


O caderno rosa de Lori Lamby é parte da chamada Trilogia Obscena2 , iniciada por Hilda Hilst, no ano de 1990. Essa trilogia teve, na época de sua publicação, a finalidade específica de oferecer ao público textos supostamente mais deglutíveis e divertidos, que, aproveitando-se da temática erótica, fossem garantia de vendagem da obra desta escritora, que sempre lamentou não ser lida e nem compreendida pelo público.

Não obstante, a publicação de O caderno rosa causou um mal-estar extremo ao misturar, em uma mesma obra, os componentes pornografia e infância. Acusada de incentivar a pedofilia com a criação de sua protagonista, a autora amargou a incompreensão tanto da crítica, quanto de seu restrito grupo de leitores fiéis, os quais reprovaram a incursão pela pornografia e qualificaram como lixo estético o texto do Caderno.

Acreditamos que grande parte da inquietação frente ao texto hilstiano se deve também a uma combinação de dois elementos não muito usuais na produção literária, principalmente na chamada “alta literatura”: texto pornográfico e autoria feminina. Esta hipótese nos leva a discutir alguns aspectos relativos à construção de uma “imagem de escritora” a partir de formulações referentes às noções de performance de gênero e identidade, bem como a relação desses elementos com a literatura e com a cultura.

No caso de O caderno rosa de Lori Lamby, a personagem é uma menina de oito anos que se apresenta como alguém que descobriu as delícias de lamber e ser lambida. A obscenidade do texto se apresenta já nessa construção da personagem infantil que não constrói nenhum problema em relação à venda de favores sexuais aos adultos mas que vê nisso a possibilidade de adquirir coisas que deseja, como uma boneca da ‘Xôxa’. Sem nenhum tipo de moralismo, falso ou verdadeiro, já nas primeiras páginas fica claro que os próprios pais de Lori a iniciaram na espécie de prostituição a que se dedica, apesar de executar apenas estratégias de sexo oral, realizando as fantasias dos clientes adultos que desejam menininhas.
Como nos romances libertinos do século XIX, a iniciação da jovem inocente é efetuada por um adulto, encarregado de infundir valores e comportamentos conforme a necessidade e a conveniência da satisfação que pretende ter com a iniciante. A partir de uma pretensa falta de qualquer escrúpulo, inicia-se uma discussão sobre a excessiva sexualização e erotização do corpo da criança na sociedade atual, uma vez que, sem noção dos atos que pratica, a inocente personagem passa por uma libertina mirim, que se compraz em satisfazer seus clientes
Não apenas os satisfaz como, com sua inocência e amoralismo, faz com que as ações dos mesmos não pareçam perniciosas para eles próprios. Em uma reversão de papéis, a personagem é percebida como alguém que escolheu fazer o que faz e, justamente por isso, anula a culpa dos clientes
No entanto, o leitor que percorrer a narrativa até o final, passando por cima dos ruídos do nojo, da moral e dos bons costumes, descobrir-se-á presa de uma hábil armadilha textual: tudo que Lóri escreveu no caderno é inventado. Os pais, ao descobrirem que a menina teve acesso a material impróprio para menores, literatura pornográfica (mesmo que de alto nível como Henry Miller e Georges Bataille) e ao livro que o pai-escritor estava produzindo, serão internados em uma casa de repouso. O tio Abel não existe e as histórias de Corina e do Jumento, bem como as do cu do sapo Liu-Liu, foram copiadas dos escritos do pai, guardados na prateleira da biblioteca etiquetada como BOSTA.

No desfecho, a personagem explica que escreveu o Caderno rosa para tentar salvar o pai, escritor fracassado porque não publicava nenhum texto vendável e cujo editor exigira que escrevesse umas bandalheiras para vender e gerar lucros, já que a literatura que ele produzia tinha qualidade demais para um público de ‘anarfas’. A partir dessa informação, é possível perceber que o texto estava injetado com pistas desde o início, por exemplo, quando a menina diz que ‘depois de tudo’ é que vai contar ‘o começo da história’.

Tais reflexões mais uma vez confirmam que, para essa autora, escrever pornografia configura-se como um ato político. Produzindo “não o discurso que se estabelece sobre os comportamentos amorosos, mas esse tecido de figuras eróticas, separadas e combinadas como as figuras retóricas do discurso” que, segundo Barthes (1999: 132) caracteriza a pornografia. A autora consegue ultrapassar o procedimento da simples excitação e saturação do corpo erótico para estabelecer um diálogo com a cultura e com a produção literária. A multiplicidade de referências descentraliza o discurso e resulta em um texto desterritorializado – que não se faz pertencer a nenhuma ordem, nem à erudita, nem à pornográfica – texto rizomático .
Desse modo, fica confirmada a proposição do poema na contracapa de Amavisse: O caderno rosa, não passa de uma sonora gargalhada de Hilda Hilst, quem quiser rir com ela, que ria; quem
não quiser, que devidamente sinta-se indignado.

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