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Política e Poder






O mérito das 555 páginas da última biografia é discutir não apenas a vida e a religiosidade de Cícero Romão Batista, mas mostrar os bastidores políticos e econômicos da Igreja Católica em todas as suas esferas. Lira realiza um amplo painel das condições históricas e sociais que permitiram o surgimento do fenômeno religioso que tomou proporções inimagináveis para a sociedade brasileira. Lira não realiza a exaltação do mito religioso. Mostra os lados positivos e os negativos da personalidade do Padim Ciço e seu profundo respeito a hierarquia eclesiástica personificada pelo Vaticano.Ao terminar a leitura fica o desejo de imediatamente visitar Juazeiro do Norte e conferir toda essa história passeando pelos locais sagrados e históricos do interior do país. ****




Entrevista

A partir do subtítulo – “Poder, Fé e Guerra no Sertão” -, você parece deixar claro que não poupa padre Cícero das muitas críticas negativas atiradas contra ele pelos detratores? É evidente que não. Não escrevi o livro para poupar Cícero do que quer que seja. Fiz uma pesquisa rigorosa, procurando contextualizar o biografado em suas circunstâncias históricas. Não coloquei panos mornos, não tergiversei, não furtei ao leitor o direito de conhecer as nuances e as contradições de um personagem tão polêmico como Cícero. Procurei traçar um retrato de corpo inteiro, o mais fiel possível, deste homem profundamente enigmático e controverso. Há passagens da obra que, por certo, oferecem munição pesada para os eternos detratores do padre. Mas também há outras que explicitam o fato de que Cícero foi alvo, à época, de um inquérito eclesiástico que hoje nos parece etnocêntrico e tendencioso. A história, como sempre, é bem mais complicada do que, à primeira vista, aparenta. Mas de que “barbaridades”, exatamente, você fala?

Na primeira parte do livro – “A Cruz” – você faz o registro da infância de Cícero, sua passagem pelo seminário da Prainha, as primeiras dificuldades e sua chegada a Juazeiro, na época apenas uma aldeia. Mas o ponto alto da primeira parte são as dificuldades de Cícero com relação à Igreja Católica, tendo como epicentro o suposto milagre da beata Maria de Araújo. Por que a Igreja Católica reconheceu milagres semelhantes ocorridos na Europa e negligenciou o de Juazeiro. Preconceito? A leitura atenta do livro revela que houve um choque entre dois mundos que não conseguiam dialogar entre si. De um lado, a Igreja Católica hierarquizada, presa à ortodoxia do rito, alimentada pela cartilha ultramontana que via no catolicismo popular um desvio a ser combatido. De outro, a fé cabocla, imersa em uma visão de mundo próxima ao mágico e ao maravilhoso, um universo mental cheio de reinterpretações da crença cristã, uma devoção que não se deixava formatar pelas normas rígidas da liturgia. O próprio homem Cícero Romão Batista, um sertanejo formado em um seminário ultramontano, era fruto deste mundo clivado, desta dicotomia inconciliável. Toda a história pessoal dele decorre desta contradição fundamental que ele próprio encarnava. Em resumo, a frase historicamente atribuída ao então reitor do seminário da Prainha, padre Pierre-Auguste Chevalier, abarca bem, a meu ver, tal questão: “Jesus Cristo não iria sair da Europa para fazer milagres nos sertões do Brasil”, teria argumentado o francês Chevalier.


Ainda na primeira parte do livro, um das passagens mais emocionantes é a viagem de Cícero a Roma. Quer dizer, Cícero continuou a remar contra a maré, indo a Roma, com a ajuda do presidente de Pernambuco, dos romeiros e de algumas famílias nordestinas abastadas em busca de sua reabilitação. Por que fracassou? Reconstituí os oito meses da permanência de Cícero em Roma com base em uma série de cartas que ele escreveu de lá, bem como pelo conteúdo dos documentos protocolados e produzidos no Santo Ofício. O caso é que a sorte de Cícero estava selada desde muito antes de sua partida para a Europa. As cartas do arquivo da Diocese do Crato e a documentação do Arquivo Secreto do Vaticano são bastante claras a esse respeito. Os cardeais inquisidores, em Roma, já estavam suficientemente prevenidos contra Cícero, que tinham na conta de um contumaz rebelde, municiados pelos relatórios e pela correspondência que partiam diretamente da mesa de dom Joaquim e da Nunciatura Apostólica, em Petrópolis. Para complicar o cenário, o Santo Ofício expediu ao final dos interrogatórios de Cícero um documento dúbio, que o padre entendeu como um perdão amplo, geral e irrestrito; mas dom Joaquim interpretou como sendo a confirmação de todas as penas que recaíam contra o subordinado. Como resultado, a desinteligência entre ambos apenas se aprofundou.
Suspenso das ordens sacerdotais, Cícero promoveu reuniões com os figurões da época e tornou-se um dos líderes políticos mais influentes do Ceará. Foi durante 18 anos prefeito de Juazeiro. Logicamente, um ato condenado pela Igreja da época.
É preciso esclarecer este ponto. Não foi o fato de ter entrado na política que motivou as punições de Cícero, que muito antes disso teve as ordens sacerdotais suspensas e ficou sem poder subir ao altar, rezar missa, ministrar sacramentos. Ora, padres-políticos sempre existiram no Brasil. Além do mais, é necessário lembrar que Cícero só ingressou na política já sexagenário, após ter sido julgado e condenado pela Igreja, de ser declarado um proscrito pela cúpula do clero. Foi a capacidade de articulação e de costurar alianças estratégicas com as elites que fez de Cícero um sobrevivente, enquanto outros líderes messiânicos de sua época, como Antônio Conselheiro, eram reprimidos e mortos pela repressão governamental

No final do livro, você descreve o sofrimento de Cícero, já com mais de oitenta anos, às portas da morte. Mesmo assim, ele negocia sua herança com o Vaticano, em troca de sua reabilitação, cedendo sua fortuna, acumulada através de doações dos romeiros e de famílias ricas nordestinas, ao clero cratense, um total avaliado em 340 contos de réis. Reconciliação nunca houve. E Cícero morreu como um proscrito. Ele foi traído pelo clero cearense? Até o último de seus dias, Cícero desejou morrer reconciliado com a Igreja que o renegou. A doação espontânea de sua fortuna a instituições eclesiásticas e ao bispado do Crato é uma demonstração eloquente disso. O curioso a notar é que a Igreja Católica sempre condenou a origem do patrimônio de Cícero, por considerá-lo espúria, fruto do fanatismo, da má-fé e da ignorância dos romeiros e peregrinos. Pois a mesma igreja não teve pudores em se articular para receber o dinheiro que considerava sujo. O livro traz uma série de cartas trocadas entre a diocese do Crato, a Nunciatura em Petrópolis e os cardeais do Vaticano, escritas exatamente quando Cícero praticamente já agonizava. Todas as cartas tratam de um único assunto: como fazer para que o patrimônio do padre passasse aos cofres do próprio clero.




O seu livro traz uma extensa bibliografia. Quer dizer, seu trabalho foi de longo curso. Depois de tantas leituras, você, mesmo sendo agnóstico, se convenceu da existência do milagre? Não sou um homem religioso. Não acredito em milagres. Mas é inegável que algo ainda inexplicável aconteceu em Juazeiro. O problema é que as perguntas tendem a ficar sem respostas para sempre, pois a maior parte das possíveis provas foi atirada ao fogo, por determinação de um decreto do Santo Ofício. O corpo da beata, de onde poderia se extrair material para uma comparação genética com os poucos paninhos manchados de sangue que sobreviveram ao decreto da Santa Sé, também sumiu em 1930, após exumação clandestina, ordenada pela Igreja. Ao mesmo tempo, penso que o fato de ter ou não ocorrido um milagre é irrelevante do ponto de vista histórico. O fundamental é compreender os desdobramentos do episódio, suas consequências, o que de revelador existe nesta história que envolve fé, intriga e poder.



Dentro da bibliografia pesquisada, você coloca também os inimigos de Cícero. Cita o libelo de Antônio Gomes de Araújo – O Apostolado do Embuste -, como um dos mais contundentes livros contra o milagre de Juazeiro. Na bibliografia pesquisada, você encontrou mais hagiografias ou livros que desconstroem Padre Cícero e o milagre da beata Maria de Araújo?
Toda a vasta bibliografia produzida sobre Cícero oscila entre esses dois extremos. Logicamente, precisei ler e reler toda essa produção literária, desde os livros mais ingênuos, devocionais, até os mais cáusticos e demolidores, como o do padre Gomes e o de Otacílio Anselmo. Há ainda uma boa e equilibrada produção acadêmica sobre o assunto, entre os quais destaco os livros de Ralph Della Cava, Luitgard Oliveira Cavalcanti Barros, Marcelo Camurça, Maria do Carmo Pagan Forti e, mais recentemente, o de Antônio Mendes da Costa Braga. O que meu livro traz de novidade é a consulta a documentos inéditos ou pouco visitados pela historiografia tradicional, além da narrativa jornalística, mais próxima e atraente ao leitor contemporâneo.

Tende a prevalecer a noção de que o santo é aquele que teve uma vida exemplar, que foi modelo de virtude. Padre Cícero se enquadraria nesse conceito? A ideia de que os santos foram indivíduos imaculados, modelos de virtude, é absolutamente equivocada. Os santos, segundo a Igreja, são homens e mulheres que, em vida, foram confrontados em sua fé pelas muitas e inevitáveis imperfeições humanas. São indivíduos que travaram batalhas íntimas e pessoais entre a sua convicção e as deficiências e defeitos a que estamos sujeitos todos nós, seres humanos. Nesse aspecto, o caso de Cícero é paradigmático. Para mim, ele é um homem. Um homem fascinante. Exatamente porque contraditório, polêmico, capaz de produzir amores e ódios na mesma medida.



Milhares de romeiros brasileiros já canonizaram Padre Cícero. Quer dizer, a Igreja Católica, apesar de alguns sinais da reabilitação de Cícero, ainda continua a não reconhecer formalmente Cícero como santo. Por quê? Entendo que isso é apenas uma questão de tempo. O pano de fundo da reabilitação canônica de Cícero compreende dois vetores. O primeiro é o reconhecimento oficial de que as romarias são legítimas expressões de fé, apesar do preconceito de que elas não passam de “coisa de fanáticos e ignorantes”. O segundo, o fato de que o avanço das igrejas neo-pentecostais está a exigir uma reação imediata. Para a Igreja, pragmaticamente, tornou-se impossível deixar a legião de devotos de Cícero à margem da liturgia, sob pena de deixar também os romeiros e peregrinos expostos à ofensiva evangélica. Trata-se, sim, de uma nova espécie de “guerra santa”. Os documentos produzidos no processo de reabilitação, ora em curso, não fazem questão de dissimular isso. O livro põe a questão a nu.



No término do livro, você descreve o desenvolvimento de Juazeiro. Ainda no epílogo, o bispo dom Fernando Panico, ao celebrar a missa de aniversário da morte de Cícero, deixa claro seu desejo da urgente reabilitação do “Padim”. Parece que a reabilitação é vontade também do papa Bento XVI. Dessa forma, o reconhecimento de Padre Cícero torna-se algo concreto. Ou não?
Não tenho dúvidas de que a reabilitação já começou. Falta apenas a oficialização, a declaração pública. A recente elevação da matriz de Juazeiro a basílica é uma evidência disso. A instalação de um vitral com a imagem de Cícero, ao lado de outros santos oficiais da Igreja Católica na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também em Juazeiro, é outra. As homilias de dom Fernando Panico não deixam qualquer margem para incertezas. Cícero está sendo reabilitado. Na verdade, melhor seria dizer: a Igreja é que sentiu a necessidade de se reabilitar perante a força avassaladora da fé popular.

(José Anderson Sandes) Diário do Nordeste ( Caderno 3) 03/01/10

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