Minha noite começa com Pedro Almodovar e sua obra prima. Arte, sensibilidade, emoção e simplicidade quando se juntam resulta nisso. Um filme irreparável cheio de impressões e sentimentos. Que bom que exista coisas como Almodovar para mostrar que existe vida inteligente diante de tanta hipocrisia e baixaria em nossa volta.
OUTRAS IMPRESSÔES
Pedro Almodóvar tem um dom raro. Ele consegue transformar
histórias bizarras em obras de arte únicas de sensibilidade extrema. Tais
histórias, em mãos erradas, poderiam se tornar meros melodramas fadados ao
fracasso e ao escracho geral, tanto de público quanto de crítica. Em
Tudo Sobre Minha Mãe, o diretor consegue o seu trabalho máximo,
com características marcantes de toda sua filmografia, como por exemplo o seu
amor declarado pelas mulheres, o drama íntimo e pessoal de cada personagem
trabalhado de maneira única e tudo recheado com as melhores referências
cinematográficas possíveis, nunca beirando o plágio ou oportunismo.
Esteban (Eloy Azorín) é um precoce escritor de dezessete anos
que, em seu aniversário, pede como presente a sua mãe, Manuela (Cecilia Roth),
para ir a uma apresentação da peça "Um Bonde Chamado Desejo" (no cinema,
Uma Rua Chamada Pecado, com Marlon Brando e Janet Leigh). Após
o término, Esteban espera ansiosamente pela saída da estrela Huma Rojo (Marisa
Paredes) dos camarins, a fim de pegar um autógrafo com ela. Em meio ao temporal,
Esteban é atropelado, falecendo logo a seguir no hospital. Sozinha, sua mãe
decide voltar para Barcelona, cidade de onde fugira há alguns anos atrás, para
encontrar o pai do menino, que vive como travesti, e dar-lhe a difícil
notícia.
No caminho de Manuela cruzam diversos outros personagens, como
Agrado, sua grande amiga travesti interpretada por Antonia San Juan; Hermana
Rosa, uma boníssima mulher que trabalha em uma instituição de ajuda às pessoas,
interpretada pela bela Penélope Cruz (Vanilla Sky,
Profissão de Risco); e a própria Huma Rojo, interpretada pela
ótima Marisa Paredes, atriz em franca expansão no circuito internacional. Há
ainda alguns personagens secundários, como os pais da irmã Rosa e a própria
Lola, pai de Esteban, que aparece na história quase no fim, mas com sua
importância justificada ao extremo.
O bacana é que nada é gratuito, tudo está em seu mais perfeito
lugar. Todos os personagens que rondam a vida de Manuela trazem algum
significado novo, uma reflexão ou dão força para as suas ações. Almodóvar vai
costurando todas as pontas dos dramas individuais com seu tradicional modo de
nos prender à história, por mais bizarra que sua sinopse possa ser. Os
acontecimentos estão lá, mas em nenhum momento soam artificiais ou gratuitos.
Esse é seu grande mérito, nos fazer acreditar que todo o mundo que está
construindo é verossímil, que podem existir pessoas com esses pensamentos e
atitudes. Para construir esse seu grande e bizarro ambiente, Almodóvar usa e
abusa das cores fortes nos cenários, nos figurinos e das mais belas canções
latinas, características fortes de toda sua filmografia.
Apesar de soar meio absurdo para os menos acostumados aos seus
trabalhos, o roteiro do Almodóvar é sempre coerente e com conteúdo. Ele não nos
poupa das probabilidades que os rumos de suas histórias vão tomando, mas também
não deixa que os acontecimentos soem em tons ofensivos. Quanto mais ele vai
abrindo seu leque de situações com pequenas reviravoltas, mais vai construindo
um background rico para seus personagens e humanizando seus dramas. Não existem
heróis nem vilões, apenas pessoas que erram ou acertam em suas vidas. O roteiro
reserva ainda espaço para discutir a força e admiração às mulheres que Almodóvar
assumidamente tem, porque, tirando o falecido Esteban, todos os personagens
principais são femininos, sejam homens ou mulheres.
Para rechear ainda mais o conteúdo de seu trabalho, o diretor
faz duas belíssimas homenagens à obras já clássicas. A mais óbvia é a peça que
ambientaliza a personagem Huma, Um Bonde Chamado Desejo. A cada vez que via um
dos personagens exercitando o seu potencial em cena, sentia um enorme prazer ao
lembrar do belíssimo filme já citado no início desta matéria, Uma Rua Chamada
Pecado. O mais interessante é que Almodóvar faz uma referência bastante
explícita ao filme A Malvada, incluindo ainda uma cena do
original em seu filme que, mais para a frente, se repetiria em atitude pelos
personagens. Nina, que faz uma das protagonistas da peça com Huma, acusa Manuela
de estar agindo com Huma exatamente como Eve estava agindo com Margo, resultado
da cena exibida pelo diretor na obra original.
Uma obra tão rica e complexa não poderia passar despercebida
pelas premiações ao redor do mundo. Tudo Sobre Minha Mãe faturou diversos
prêmios, entre eles o Oscar e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, a
Palma de Ouro de Direção para Almodóvar em Cannes e sete prêmios Goya, incluindo
filme e diretor. Almodóvar voltaria a ser premiado no Oscar dois anos depois, só
que dessa vez em uma outra importante categoria, a de Roteiro Original, com seu
diferente, porém não menos esplêndido Fale com Ela. Neste mesmo
ano, conseguiu também uma surpreendente (porém justíssima) indicação ao prêmio
de Melhor Direção, que acabou ficando com Roman Polanski e sua obra-prima
O Pianista.
Para quem gosta de cinema diferenciado, que priorize a história
e que não deixe de lado uma boa técnica, sabe que os trabalhos do diretor
espanhol são mais do que obrigatórios. Considero Tudo Sobre Minha
Mãe sua obra prima, mas fica o aviso dos temas pesados que Almodóvar
aborda, que podem não agradar aos mais conservadores. Ele faz com que o incomum
seja natural, que o escuro se torne claro, na mais bela poesia visual desse
maestro sensível na arte de fazer cinema. (Rodrigo Cunha)
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