A literatura cumpriu a tarefa de investigar e refletir sobre as transformações sociais e políticas que ocorreram no Brasil no século XIX e no início do século XX. E o papel social do romancista e do sociólogo só se diferencia a partir da institucionalização das ciências sociais no país, ocorrido somente no século XX. Dessa maneira, uma parte da produção literária brasileira, depois da independência, assumiu o compromisso de refletir sobre a nação e suas principais características.
A literatura assumiu um papel fundamental na construção de uma consciência nacional. A afirmação da identidade nacional perpassava a produção literária encontrando nas diversas tendências reflexões acerca das características da nação brasileira. Seja nas poesias românticas de Gonçalves Dias e Castro Alves, no retrato idealizado presente nas obras de José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo e até na obra reflexiva de Machado de Assis, a literatura era responsável, de uma maneira ou de outra, pela formação de uma idéia acerca da sociedade brasileira.
A literatura ao contrário de ser um empecilho à formação da mentalidade científica chegou a “forçar, a preeminência da interpretação poética, o estilo direto sobre a interpretação racional. Ante a impossibilidade de formar aqui pesquisadores, técnicos, filósofos, ela preencheu a seu modo à lacuna, criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento” (Candido, 2002: 30).
A reflexão crítica sobre a realidade nacional perpassa os interesses de nomes importantes a partir de 1870, como por exemplo, o trabalho da Escola de Recife. Apesar de seus membros não serem cientistas sociais, como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Manuel Bomfim, Alberto Torres e Joaquim Nabuco, esses nomes escreveram obras que impulsionaram um olhar mais reflexivo sobre as questões sociais do país.
Após a institucionalização das ciências sociais no Brasil, nos anos 1930, a partir da fundação da Escola de Sociologia Política e da Faculdade de Ciências Humanas em São Paulo, os intelectuais e sociólogos fizeram um esforço para distinguir os dois tipos de discurso. Dessa maneira “a sociologia científica viu-se obrigada a demarcar incisivamente sua distância em relação à literatura, e isso foi feito através do corte epistemológico entre ciência e ideologia” (Sena, 2003: 12).
A discussão sobre a intersecção entre o discurso literário e o sociológico continua fazendo parte das discussões realizadas na academia. E nas últimas décadas ganha força quando cursos de pós-graduação apresentam linhas de pesquisa reforçando o diálogo entre essas formas de conhecimento.
Para Mattei Dogan (1996), o cientista social tem vários desafios para enfrentar ao se deparar com seu objeto de estudo. Dependendo da natureza do objeto, das características do método adotado, recorrer a outras disciplinas especializadas pode proporcionar uma maior capacidade de esclarecimento do objeto, além de oferecer uma visão mais condensada do mesmo ampliando os limites da interpretação. A riqueza da explicação científica estaria alicerçada sobre a junção que as disciplinas escolhidas seriam capazes de realizar.
Sebastião Rios (1998) afirma que a arte ficcional pode ser ao mesmo tempo uma forma de entretenimento e fruição, uma forma de conhecimento e configuração de sentido do real. “Enquanto representação imaginativa da vida, a arte representa à realidade a partir de uma estrutura que rearticula o sentido do material tomado a vida, conferindo ao universo recriado sua unidade e estabelecendo seus limites” (p.8). Dessa forma, a realidade sofre uma alteração, pois "a apresentação artística do material ficcional equivale a uma reconstrução da realidade, que desenvolve e revela estruturas de significado que a realidade somente possuía em um estado obscuro e confuso” (p.8).
As obras de arte recriam a realidade e respondem à necessidade universal que o homem tem de ficção e de fantasia. “O artista conduz os outros homens a um mundo de fantasia, onde os seus anseios se libertam, afirmando desse modo à recusa da consciência humana em aceitar o condicionamento do meio; mobiliza-se assim um potencial de energias submersas que, por sua vez, regressam ao mundo real para transformar a fantasia em realidade” (Thompson, 2002: 22).
Apesar das diferenças entre essas duas formas de conhecimento, a ciência e a literatura têm em comum o fato de criar um mundo organizado, unitário e necessário. E é através de suas situações sínteses que a literatura seria capaz de mostrar a sua verdade, pois “o impacto que ela causa no leitor descortina uma nova visão da realidade, o que equivale a dizer que revela uma nova realidade” (Rios, 1998: 10).
Para José de Sousa Martins (2005), a música, a fotografia, os filmes, as oficinas de arte são suportes ricos de reciprocidades de conhecimento. Essas fontes de conhecimento que são gêneros criadores de imagens e imaginários enriqueceriam os horizontes das ciências sociais, criando formas diferenciadas de reflexão científica. Essa abordagem inaugura uma fase nas ciências sociais onde os paradigmas do conhecimento científico são discutidos. A ciência dialogando com outros suportes de conhecimento promoveriam uma etapa em que as ciências sociais teriam que redimensionar algumas idéias sobre a validade das pesquisas acerca desses objetos de percepção da realidade.
O desafio que a literatura coloca para o cientista social não é tão diferente do desafio encontrado na interpretação de outras fontes de pesquisa. A principal diferença está na maneira como será realizado o recorte da realidade. “Como não se pode estudar a realidade social como um todo, o cientista realiza um corte, que em geral, é explicitado logo no início de qualquer estudo. Já a literatura não precisa explicitar formalmente o seu recorte. Cabe, então, ao pesquisador interessado no estudo da literatura saber como os escritores recortaram a realidade. Da diversidade de aspectos que ela comporta o que eles escolheram para nos mostrar e o que não nos mostraram” (Andrade, 2002: 25).
A ciência social precisa ter o compromisso de ser o mais fiel possível à realidade que pretende analisar. A literatura, ao contrário, não tem o mesmo compromisso, pois sua base de ação está na invenção, na elaboração de uma nova visão do real. Os escritores possuem liberdade e dessa forma podem realizar digressões que os cientistas sociais estão impedidos de realizar pela natureza da sua ciência.
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