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O VENTRE DA DISCORDIA

O primeiro livro que mostrou a importância e o poder da literatura em minha vida foi esse romance de Carlos Heitor Cony. Lembro que aos 14 anos mais ou menos, nunca havia visto um livro que proporcionassem tantas sensações desconhecidas naquele adolescente. A força da narrativa que apresenta um personagem marcada fortemente pela exclusão social e familiar. Mergulhar no intimo desse personagem, ser cumplice de seus segredos e ser coadjuvante de uma história de amor e ódio marcou minha trajetória de vida.
Hoje volto a leitura da obra. Mais de 15 anos se passaram. A força do livro é maior, por vários motivos. Pela minha experiência de vida, pelo resultado das escolhas orientadas e principalmente, pela total identificação com essa narrativa imensamente trágica.

OUTRAS IMPRESSÕES
Originalmente escrito em 1955, "O Ventre" foi inscrito num concurso literário promovido pela ABL (Academia Brasileira de Letras) e pela antiga Secretaria da Cultura do Distrito Federal. Ele narra a trajetória de José Severo, garoto que nasceu em uma família de classe média alta do Rio de Janeiro (RJ) e é categoricamente desprezado pelo pai --o filho é fruto de uma relação adúltera de sua mãe.
José é um adolescente sôfrego, feio como o cão (alto e narigudo), que tem uma relação de amor e ódio com o irmão mais novo, um brando superprotegido e asmático, de intelecto bem desenvolvido. Foi matriculado num colégio interno, enquanto o irmão teve todas as atenções da casa para si. Depois de ser pego fornicando com a vizinha da escola, mulher de um capitão do Exército, José, expulso, ficou proibido de se matricular em qualquer outra escola pública. Largou o Rio de Janeiro e foi dirigir ônibus em Maceió.
A ABL não deu o prêmio para Cony, mas recomendou-o à publicação. "Houve três pareceres, entre eles o de Manuel Bandeira (poeta), afirmando que meu livro era muito forte. Publicaram isso no Diário Oficial", lembra Cony. "O Ventre" causou furor, elegendo o autor, formado em filosofia, à estatura de romancista de prestígio de crítica e público. O livro já vendeu sete edições.

Leia, a seguir, terchos da entrevista que Carlos Heitor Cony deu por telefone em sua casa, no Rio de Janeiro.

Folha - O senhor escreveu o livro para o concurso literário?
Carlos Heitor Cony - Já o tinha escrito antes. Mas o concurso me fez finalizá-lo. Eu não tinha conhecimento da área literal. Eram esses concursos que exigiam pseudônimos.

Folha - E qual era o seu?
Cony- Luís Capeto, pseudônimo do rei Luís 16, quando foi enforcado. Os franceses não enforcavam o rei, mas o pseudônimo, para mostrar que o rei era um cidadão igual a um bastardo.

Folha - Por que não lhe deram o prêmio, apesar de assumirem que era o melhor livro do concurso? Cony- Disseram que era um livro muito forte e cruel. Não só por causa dos palavrões; já havia palavrão na literatura brasileira, como em Jorge Amado. Disseram que esse livro era contra a condição humana. O personagem é um filho da puta, sua mãe também, mas são pessoas normais. O leitor fica com raiva, com repulsa.
Folha - No entanto, ele vendeu sete edições e está sendo relançado.
Cony- Um autor sempre suspeita da permanência de sua obra. Fico feliz por saber que "O Ventre" permanece. É um livro dos anos 50, antes da pílula. As pessoas usavam chapéu. Era no clima da morte de Getúlio (Vargas).

Folha - O cenário, o pessimismo, a burguesia cínica e o adultério são inspirados em Machado de Assis?
Cony- Sim. Com a presença do existencialismo de Jean-Paul Sartre, que me marcou muito. Machado foi um pré-existencialista. A cólera pela condição humana, o personagem alienado.

  Folha - Mas o formato do livro é machadiano.
Cony- É. Vivi ambientes parecidos com o de Machado, mas ninguém percebeu a influência de Sartre na minha obra. Existem cacos que são plágios de Sartre. Copiei insensivelmente, não literalmente.

Folha - O seu pai era semelhante ao pai de "O Ventre", um ausente, ou ao de "Quase Memória", um apaixonado pela vida?
Cony- São totalmente diferentes, mas meu pai está mais para o de "Quase Memória". "O Ventre" é mais romance, apesar de defeitos de carpintaria e o desejo de dizer tudo ao mesmo tempo. "Quase Memória" é uma crônica, não uma história. É uma quase história.

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