
A prosa intensa de Moacyr Scliar praticamente impede o leitor de largar as páginas desse seu livro, um dos últimos do autor publicados antes de sua morte. Uma narrativa apaixonante que nos aponta a necessidade de acreditarmos em uma utopia para que pelo menos um pouco a nossa vida tenha algum sentido. Irresistivel aventura pelo reino das palavras. E a paixão aumenta pois ao ser indicado pelo vestibular da Universidade Federal de Goiás, podemos realizar várias associações com movimentos históricos e a rica abordagem sociológica que a obra oferece. Um tempo em que utopias como a de uma sociedade comunista dava a esperança de que um mundo melhor podia surgir. Tudo em vão.............
Trechos do Primeiro Capítulo:
De uma coisa posso me orgulhar, caro neto: poucos chegam,
como eu, a uma idade tão avançada, àquela idade que as
pessoas costumam chamar de provecta. Mais: poucos mantêm
tamanha lucidez. Não estou falando só em raciocinar, em pensar;
estou falando em lembrar. Coisa importante, lembrar. Aquela
coisa de “recordar é viver” não passa, naturalmente, de um lugar‑comum
que jovens como você considerariam até algo meio
burro: se a gente se dedica a recordar, quanto tempo sobra para
a vida propriamente dita?
A vida, que, para vocês, transcorre principalmente
no mundo exterior, no relacionamento com os outros?
Esse cálculo precisa levar em conta a expectativa de vida,
precisa quantificar (como?) prazeres e emoções. É difícil de fazer,
exige uma contabilidade especial que não está ao alcance
nem mesmo das pessoas vividas e supostamente sábias. Que eu
saiba, não há nenhum programa de computador que possa ajudar
— e, mesmo que houvesse, eu não saberia usá‑lo, sou avesso a
essas coisas. Vejo‑me diante de uma espinhosa tarefa: combinar
muito bem a vivência interior, representada sobretudo pela re8
cordação e pela reflexão, com a vivência exterior, inevitavelmente
limitada pela solidão, pela incapacidade física, pelo fato de que
tenho mais amigos entre os mortos do que entre os vivos. E, de
novo, qual a fórmula adequada para essa combinação? Setenta
por cento de vivência interior com trinta por cento de vivência
exterior? Quarenta por cento de interior com sessenta por cento
de exterior? O clássico meio a meio? Ou quem sabe quarenta e
cinco por cento de cada — os dez por cento que sobram ficando
reservados para aquele misterioso e indefinido território que não
é nem interior nem exterior, mas que pode estar em cima, embaixo,
ou em dimensão nenhuma?
Não sei. Só sei que recordar é bom, e é das poucas possibilidades
que me restam, de modo que recordo. É uma espécie de
exercício emocional, é um estímulo para os meus cansados neurônios,
mas é sobretudo um prazer. Um prazer melancólico, decerto,
mas um prazer, sim, resultante da facilidade com que evoco
pessoas, acontecimentos, lugares, uma facilidade que às vezes
surpreende a mim próprio. Para alguns, mesmo não muito velhos,
o rio da memória é um curso de água barrenta que flui,
lento e ominoso, trazendo destroços, detritos, cadáveres, restos
disso ou daquilo; para mim, não: é uma vigorosa corrente de água
límpida e fresca. Dos barquinhos que nela alegres navegam, lembranças,
às vezes melancólicas, mas em geral risonhas, acenam‑me,
gentis, amistosas. Estou falando, claro, de memórias
remotas, daquelas que estão ligadas à minha juventude. As coisas
do cotidiano, eu as esqueço com a maior facilidade.
Esqueço de
apagar a luz, esqueço onde larguei o relógio, esqueço de dar a
descarga no vaso sanitário, esqueço até os nomes das pessoas da
casa geriátrica onde resido — por opção minha, devo dizer: meus
filhos prefeririam que eu continuasse no apartamento, ou então
que fosse morar com eles, coisa que recusei: não quero dar trabalho
a ninguém.
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Esquecer, meu neto, é um truque que a natureza usa para
nos desligar aos poucos da realidade da existência. Mas não precisamos
encarar esse fato como coisa inevitável, mesmo porque
lembrar pode ser uma coisa agradável, particularmente quando
se traduz na possibilidade de narrar recordações para uma pessoa
como tu, meu neto. Considero‑te especial, mesmo que nossos
encontros tenham sido raros, ou talvez exatamente por causa disso.
Vimo‑nos cinco ou seis vezes, não mais, e sempre rapidamente.
Eu sabia que isso iria acontecer: quando teu pai, jovem médico,
foi para os Estados Unidos, tive o pressentimento de que não
mais voltaria.
Dito e feito: fez uma carreira bem‑sucedida, casou
com uma colega médica, tornou‑se tão americano que até fala
com sotaque. Só retornava esporadicamente e por curtos períodos.
Alegava que tinha compromissos, mas o fato é que aparentemente
não se sentia muito bem aqui. Por quê, não sei, e nunca lhe
perguntei. As relações entre pais e filhos muitas vezes estão envoltas
em bruma misteriosa, na qual realidade e fantasia se misturam.
Eu mesmo pouco posso te dizer de minha mãe (com quem, no
entanto, convivi bastante e numa fase difícil de minha vida), e
menos ainda de meu pai. Espero que entre nós seja diferente, e
a carta que me mandaste reforça essa expectativa. Aliás, parabéns
pelo teu português. Para quem nasceu e se criou nos Estados
Unidos, é excelente. Teu pai se preocupou em te manter ligado
às tuas raízes brasileiras, coisa que sempre admirei.
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