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Memórias de um senhor em busca do amor

Em seu último trabalho, Gabriel Garcia Márquez realiza uma pequena obra prima que aborda uma temática pouco comum em sua extensa e política produção literária. A trama é envolvente: Aos 90 anos, o narrador em primeira pessoa resolve se presentear: dormir com uma ninfeta virgem de 15 anos. Ao ligar para a cafetina, fica ansioso pela resposta, até que depois de muita procura, consegue marcar o seu esperado encontro. O resto é leitura, leitura e muita surpresa. Num estilo deliciosamente poético, acompanhamos sua ansiedade pelo encontro, seu desbafo de vida e ficamos na torcida para que tudo saia como ele planeja. Pode ser a última vez na vida. Mas quando encontra essa garota...............       Fica no ar uma grande suavidade e uma imensa vontade de viver cada minuto de nossa vida. Não podemos terminar nossa trajetória da mesma maneira que o simpático protagonista. Algumas frases são imperdiveis: "Quando minha esperança acabou me refugiei na paz dos boleros. O bolero é a vida"."Não há pior desgraça que morrer sozinho"; "Não vá morrer sem experimentar a alegria de trepar com amor"; "Meu Deus, o que eu não daria por um amor como esse?"; "Eu comecei a tomar consciência da velhice pelas minhas fraquezas diante do amor"; "O amor me mostrou tarde demais que a gente se arruma para alguém, se veste e se perfuma para alguém, e eu nunca tinha tido para quem"; "O sexo é o consolo que a  gente quando o amor não nos alcança"; "Um dos encantos da velhice são as provocações  que as amigas jovens se permitem, achando qe a gente está fora do jogo"; "Naquela noite descobri o prazer inverossímil de contemplar, sem as angustias do desejo e os estorvos do pudor, o corpo de uma mulher adormecida".

OUTRO OLHAR


Num registo um pouco diferente de Cem anos de Solidão, Gabriel García Márquez apresenta-nos um conto pautado pelo sentido de humor e pelo toque poético, numa prosa típica de quem ama o amor em si mesmo sem condensá-lo numa pessoa concreta, real. É neste contexto que Memória das minhas putas tristes surge, num registo mais fluido, com uma cadência mais leve e um estilo mais depurado, contrastando com a densidade dos trabalhos anteriores mas mantendo, simultaneamente, a “voz” do Autor. Esta está patente no humor apimentado de Gabo, com aquela ânsia sempre juvenil, sequiosa e insaciável de liberdade. Na escrita e no amor. Gabo, ao escrever, não conhece a palavra pudor. De facto, parece mesmo ser a única que se permite censurar no âmbito do seu vasto e riquíssimo vocabulário. Bom, a única, não. A Mentira também não cabe no universo do Autor. Só a verdade dos factos o impele a escrever.

O protagonista do romance é um telegrafista reformado, professor, poliglota, cronista e crítico musical. Dotado de uma sólida cultura clássica, mostra-se extremamente progressista nas suas crónicas, o que lhe granjeia alguns conflitos com a censura. Também a aversão à censura ou a qualquer restrição à liberdade de expressão é um aspecto típico da escrita de García Márquez. Em Memória das minhas putas tristes a personagem principal refere-se várias vezes ao censor do jornal como El Abominable Hombre de las Nueve por este chegar pontualmente ao jornal a essa hora “com o seu lápis sangrento de sátrapa godo”; ou “O seu lápis de Torquemada”, comparando-o ao célebre inquisidor pela dor naquele que escreve pela mutilação dos seus textos ou até pela completa adulteração dos factos. Directamente relacionada com a sua necessidade absoluta de liberdade de expressão está também uma imperiosa liberdade de expressão sexual.

O jornalista deste divertido romance goza, até aos noventa anos, de uma merecida fama de Dom Juan, não conseguindo enquadrar-se nas regras ou padrões de conduta social que tentam espartilhar a sua sexualidade dentro da instituição do casamento. É por esta incapacidade social de ser como toda a gente, que comete a afronta social não comparecer à igreja no dia do seu casamento com Ximena Ortiz – uma bela e morena Vénus de Velásquez, de olhar felino. O rebelde jornalista é, sobretudo, um homem, fora do horário de trabalho, dedicou toda a sua vida à boémia - “...as putas não me deixaram tempo para ser casado”. E que se incumbiu de transformar o amor numa troca de favores, reduzindo-o a uma mera transacção comercial – “Nunca fui para a cama com uma mulher sem lhe pagar”. É por esse motivo que a personagem aos noventa anos decide escrever a memória das suas putas tristes – a história de todos os amores que poderiam ter sido e não foram. É por isso, também, que, no dia do seu nonagésimo aniversário, o cronista decide visitar o bordel da sua velha amiga Rosa Cabarcas, uma mulher de “olhos diáfanos e cruéis” em cujo sorriso maligno ostenta a sua índole de traficante de carne humana. O objectivo da sua visita é o de comemorar a passagem à décima década de vida com uma noite de amor louco na companhia de uma adolescente virgem. Gabo explora o tema do amor na terceira idade, ao relativizar a gravidade das consequências do envelhecimento, principalmente no que toca à dissolução da memória. Esta, no seu entender, torna-se volátil para o supérfluo e perene para aquilo que mais interessa o sujeito.

Memória das minhas putas tristes é a exaltação do amor platónico, construído à base de um desejo onírico de uma grande beleza plástica. A descrição de Delgadina adormecida assemelha-se quer pelas cores quer pelas características físicas da jovem, a um quadro de Frida Kahlo. O protagonista, a quem Rosa Cabarcas chama de “meu sábio triste” ama mais Delgadina adormecida do que acordada. Ama uma figura idealizada, transfigurada, tal como Pigmaleão apaixonado pela sua estátua. (hasempreumlivro. blogspot)

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